Escola em tempos de pandemia: um manifesto em defesa da educação pública

O mundo não é. O mundo está sendo. (Paulo Freire)

Por que incomoda tanto estarmos em casa? Essa talvez seja uma das principais questões que se apresentam para nós educadores neste momento. Somos seres sociais, produzimos cultura no encontro com o outro e com a natureza. Por isso, tem sido difícil esse processo para grande parte da população. As tecnologias têm nos ajudado a não perdemos o diálogo, mas não têm sido suficientes para dar conta da nossa necessidade de presença do outro. Mas será esse de fato o maior incômodo?

Diante de uma realidade nunca experenciada por nós, o isolamento social em massa e a dimensão de que a nossa individualidade afeta a vida de outros sujeitos tornaram-se pontos de grande atenção. Mas, na mesma intensidade, apresenta-se a preocupação com a economia, com a suposta garantia de empregos, com o “salário” do trabalhador.

Por isso, frente a esta falsa polêmica sobre preservação da vida versus os empregos, há aqueles que procuram novas estratégias para nos adaptarmos ao isolamento, tentando naturalizar o momento a fim de que a produção econômica não pare. Ou, através dos meios de comunicação e demais aparelhos ideológicos dominantes, tentam construir uma lógica de um isolamento “rápido”, “bem feito”, com todos os suportes necessários para “apressar” um retorno a uma “normalidade”, na verdade, na reativação das atividades econômicas.

Mas no meio desse caos, do medo, da angústia, também há pessoas refletindo sobre a reorganização de valores sociais. Estes somos nós, educadores, que pensamos a educação como prática da liberdade, como paixão pelo conhecimento, como capacidade de pensar criticamente sobre nós mesmos; como atividade de transformação social.

Acreditamos que este seja o momento em que se evidencie que todo o conhecimento produzido socialmente, que se reflete inclusive nos avanços tecnológicos, precisa estar a favor das nossas vidas e não o contrário. Nossas vidas não podem ser condenadas a servir sem limites a um projeto de exploração da natureza, de produção de mercadorias e de lucros de acordo com os interesses da classe dominante.

O que querem impor sobre nós é uma culpa por estarmos em casa. A lógica do mercado é: precisamos mostrar resultados para recebermos nosso “prêmio”, o salário. Tentam naturalizar esse ideário encobrindo os efeitos nocivos para toda a sociedade sobre o corte dos nossos proventos.

Isso sem considerar uma grande parcela da população que já vive em condições de vulnerabilidade extrema. E para aqueles que ainda tem empregos: home office, homeschooling, Educação a Distância (EAD), trabalho doméstico, etc. Precisamos mostrar que não está tudo bem, que não podemos naturalizar o momento e darmos conta de tudo isso como se não pudéssemos agir de outra forma. Porque podemos!

A educação, enquanto uma ação e um processo de formação pelo qual desenvolvem-se estratégias para superação das desigualdades sociais, anda em conjunto com o desenvolvimento das condições básicas de saúde e emprego, ou seja, vai para além da escola.

Os objetivos da escola pública também estão para além da formação para o mundo do trabalho e incluem a formação para uma consciência social crítica, para a (preparação para) a participação social, a formação ética, a construção de valores e atitudes que visem a justiça social.

Trazer, para este momento de incertezas e ansiedade, alternativas que individualizam o problema e nos impõem a assumir papéis que não nos cabem só reforça os projetos que visam a reprodução dos interesses políticos e econômicos das elites que precisam, a todo custo, produzir uma estabilidade social, ainda que falsa, para se manter no poder.

Defendemos uma pedagogia crítico-social que dialoga com os processos econômicos, políticos e sociais do cotidiano. Portanto, somos contrários ao estímulo de estudar por estudar, como se esta ação nada tivesse a ver com o mundo. Assim, relegar a educação formal à esfera privada não faz parte de nossa intenção educativa, uma vez que nosso papel como educadoras e educadores não está somente no desenvolvimento de atitudes de quem constata e se adapta à realidade, mas o de quem impulsiona a transformação do mundo.

Precisamos estar atentos a essa tentativa de naturalização e de individualização de um problema que é coletivo e por isso precisa de soluções coletivas. A importância do poder público e do papel do Estado como representante da coletividade se faz evidente. Mas o que estamos assistindo é uma desresponsabilização dos governantes e uma responsabilização das pessoas.

Nesse sentido, aqueles, por exemplo, que enfatizam que a melhor saída para este momento é a educação não presencial estão na verdade oportunisticamente colocando os interesses econômicos acima da vida. O ritmo da vida não pode mais ser equiparado ao ritmo da produção, da fábrica, do mercado, da acumulação privada da riqueza coletiva.

A Educação a Distância na escola básica se organiza como um instrumento complementar à educação formal, presencial. Em tempo de pandemia essa modalidade está sendo apontada como a solução imediata, mas para quem? Para quê? Com qual objetivo?

Querem retirar de nós nossa capacidade de pensar com soluções imediatistas que usam o momento de crise para, no fim, consolidar um projeto privatista que reduz o papel da escola, desprofissionaliza e desqualifica o trabalho docente e reproduz uma lógica excludente de educação baseada na meritocracia.

Quem tem todas as condições adequadas de estudo (com ambiente favorável em suas casas), de tecnologia (acesso à internet, computador) e habilidades individuais adequadas (concentração, autonomia e cognição) para assumir esse projeto?

É importante destacar que, mesmo para adultos, a EAD exige uma metodologia, recursos didáticos e formação de professores específicas para esta modalidade de ensino.

Não podemos cair nessa farsa e desresponsabilizar o Estado pelo oferecimento de uma educação pública, gratuita e de qualidade. Tentam fazer parecer que é uma medida emergencial, mas está completamente articulada com os valores das atuais reformas educacionais em curso, tais como a Base Comum Curricular e a reforma do Ensino Médio. Está em consonância com as perspectivas privatizantes da escola, como a compra de materiais didáticos do mercado educacional, com um direcionamento curricular que destaque a (pseudo) qualificação para o trabalho (de preferência ampla e simples o suficiente para se adequar aonde os empresários acharem mais adequado e lucrativo).

Considerando que os impactos psicológicos deste período de isolamento e o medo deixarão marcas para além do período de confinamento, vale a reflexão sobre em que condições emocionais crianças e jovens retomarão suas atividades regulares. É possível que, no retorno, nossas crianças e jovens estejam precisando mais de uma escola que seja lugar de acolhimento, encontro e reflexão sobre os impactos e desdobramentos deste momento de pandemia, do que a continuidade de conteúdos escolares pré-selecionados antes desse contexto.

Por tudo isso, esperamos que a escola pública, lugar de acesso ao conhecimento socialmente produzido, espaço de sociabilidade, de proteção, de cuidado, de encontro com a diferença e propulsor de mudanças individuais e coletivas, esteja a serviço da população promovendo o combate à pandemia. A serviço da vida de todos e todas.

As escolas, neste momento, poderiam ser um centro de auto-organização da comunidade escolar, de forma autônoma, independente, com a participação criteriosa e voluntária dos sujeitos sociais envolvidos, de distribuição de cestas básicas, um lugar de acolhimento da população de rua, de auxílio aos mais vulneráveis. A coletividade precisa estar acima das intenções de individualizar o problema resumindo o ato educativo à mera transmissão de conteúdos. Só venceremos as condições adversas que nos assolam em conjunto.

Pela vida das nossas e dos nossos estudantes;
Pela vida das trabalhadoras e dos trabalhadores da educação;
Pela sobrevivência das famílias trabalhadoras que estão mais expostas e vulneráveis à pandemia;
Dizemos não à implementação de políticas de Educação à Distância e Educação domiciliar!

Sindscope
(Sindicato dos Servidores do Colégio Pedro II)

Post Recentes
plugins premium WordPress
Rolar para cima